Florbela Espanca: Gritos Escritos

Não era só poeta.

Era mulher quando ainda era pecado sê-lo inteira.

Escrevia com o corpo aberto, com as entranhas à mostra, com o desespero em riste e a coragem de quem nunca pediu desculpa por sentir.

Florbela Espanca não rimava para agradar.

Rimava como quem se agarra à borda do abismo com palavras.

Fez da escrita o seu grito.

E gritou tudo o que não lhe deixaram ser.

Nasceu em 1894, quando às mulheres era pedido silêncio, obediência e recato. Ela respondeu com versos que eram suspiros e punhais. Foi filha ilegítima, mulher divorciada, estudante de Direito numa universidade masculina, mulher a mais num mundo que lhe queria menos.

Escreveu sobre amor, desejo, morte, perda, exaustão, inconformismo.

Mas o que doeu à sociedade foi ela escrever com voz de mulher — inteira, libidinosa, viva, imperfeita.

“Eu quero amar, amar perdidamente! / Amar só por amar: aqui… além… / Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente…”

Que mulher era esta, que ousava amar “toda a gente”?

Que não escrevia só para um homem, mas para um ideal, para um vácuo, para um Deus que a escutasse?

A crítica literária sempre a tentou encaixar: simbolista, decadentista, romântica, feminista.

Mas ela escapava a tudo isso como quem escapa ao espartilho — com um rasgo.

Florbela era daquelas mulheres que se leem com os dedos e com as feridas.

Porque dói reconhecê-la.

Porque ela escreve o que tantas sentimos e calámos.

Os seus sonetos não são apenas forma perfeita. São forma contida de um caos que ela tentou domesticar — mas que a devorou.

Três casamentos, vários abortos espontâneos, perdas profundas, uma mente em guerra consigo mesma.

Terminou a vida sozinha, exausta e em silêncio, num 8 de Dezembro de 1930. Morreu de barbitúricos.

Tinha 36 anos.

Mas não nos enganemos: Florbela não morreu.

Foi a sociedade que nunca soube o que fazer com mulheres como ela — nem vivas, nem mortas.

Hoje, continua a ser lida como quem ouve gritos no escuro.

Porque Florbela gritou antes de nós.

Para que hoje possamos escrever sem pedir desculpa.

Para que o amor não seja sinónimo de obediência.

Para que a dor seja nomeada.

Para que a mulher não precise morrer para ser levada a sério.

“Eu sou a que no mundo anda perdida / Eu sou a que na vida não tem norte…”

Era isso.

Ela sabia-se sem norte — mas sabia-se.

E ousou escrever esse desalinho como ninguém antes dela.

Florbela Espanca foi uma mulher feita de gritos escritos.

E nós, leitoras de hoje, somos as que escutam.


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